...Assim, para quem ama, o amor, por muito tempo e pela vida afora, é solidão, isolamento, cada vez mais intenso e profundo. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. (...) O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser: é uma grande e ilimitada exigência que se lhe faz, uma escolha e um chamado para longe.(Reflexões...)

...Fui sua mulher durante anos porque você foi a primeira realidade, onde homem e corpo são indiscerníveis um do outro, fato incontestável da própria vida.Eu poderia dizer literalmente aquilo que você me disse quando me confessou o seu amor: 'Só você é real'. Foi assim que nos tornamos marido e mulher, antes mesmo de nos tornarmos amigos, não por escolha, mas por esse casamento insondável. Não eram duas metades que se buscam: trêmula, nossa unidade, surpresa, reconhecia uma unidade pré-ordenada. Éramos irmão e irmã, mas como nesse passado distante, nestes que o casamento entre irmão e irmã se tornasse sacrilégio.

...A gente não possui um ao outro por meio do corpo, mas apesar do corpo, que, como todo mundo sabe, não se identifica jamais (...) completamente com o todo da pessoa, mas aparece sempre como uma parte dela e não resiste à dominação mais viva .
....A fusão inteira do nosso ser com o outro, por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez mais nós mesmos, para ser um mundo para o outro. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios, é uma ocasião de constante renovação: cada vez ela inaugura em nós um ser novo; como um ato de linguagem, cada vez que eu falo a um Tu, é um Eu diferente que fala a um novo Tu. Quando digo Eu, já não sou aquela que falava há pouco. A relação erótica é, assim, nela mesma, criação. E o amor um elemento de produção: somos a cada instante outros, encontramos no outro cada vez um elemento novo, diferente, desconhecido, misterioso até - o que dá à relação erótica sua riqueza.

... No fundo de si mesmo, o nosso ser rebela-se em absoluto contra todos os limites. Os limites físicos são-nos tão insuportáveis quanto os limites do que nos é psiquicamente possível: não fazem verdadeiramente parte de nós. Circunscrevem-nos mais estreitamente do que desejaríamos.

(O ato amoroso ) ... nos enche a alma inteira (...) de ilusões e de idealizações espirituais, forçando-nos ao mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem possibilidade de nos esquivar, daquele que causa tamanha desordem, ao corpo.
...Pois, sobretudo, resulta no indivíduo uma espécie de interação ébria e exuberante das mais altas energias criadoras do seu corpo e a exaltação mais alta da alma. Enquanto nossa consciência se interessa vagamente, habitualmente, por nossa vida psíquica como por um mundo que conhecemos mal e que controlamos de forma ainda pior. Que ao que parece formam um , mas se desentendem . Eis que se produz subitamente entre as duas ( consciência e vida psíquica) uma tal comunhão de enervação, que todos os seus desejos, todas as suas aspirações se inflamam ao mesmo tempo.
...O mundo da criação e do amor significa: volta ao país natal, entrada no paraíso. O da impossibilidade de criar, ou do amor morto, é, ao contrário, um exílio onde os deuses nos abandonam.
...A atividade criadora se apaixona por tudo aquilo que é vida em nós, que é indício do que em nós lateja de mais secreto, e que atinge as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não se apercebia. Pode voltar àquele estado de inocência primeira que possuiu na infância. Redescobre a novidade das coisas com o frescor de uma sensação primitiva: o olhar da criança sobre o mundo que o descobre maravilhada; o olhar de Adão diante de Eva recém-saída de si.
...Confrontado com os seus longes, o amado vê a si mesmo e ao mundo exterior como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes, passível de germinar com a força das plantas na primavera.
...Nesta igualdade original do corpo e do espírito e nesta consciência ingênua de um e de outro - uma criança que acredita em tudo que vê, para quem tudo se renovou, que cheio de uma fé e de uma confiança sem limites gostaria de gritar sua alegria ao esplendor inverossímil do mundo, e não saberia saudar de melhor modo a razão senão mostrando-lhe a língua... Como se balbuciasse em sonho o que tem a dizer a dizer sobre estes esplendores ocultos. Ái de nós, esquecer tantas coisas úteis e necessárias.
...Só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro.

...O ato amoroso transforma o parceiro num conto estranho e maravilhoso. A paixão é uma porta, diferente de todas as outras portas, em 'sua arquitetura ornada de elementos ricos de sentido, em virtude de um simbolismo singular'. É o caminho por excelência que nos leva a nós mesmos. Por ela nós não somos um mundo de realidade, somos apenas o espaço e o metteur-en-scène de um mundo onírico, todo-poderoso, irresistível.
Lou Andreas Salomé ( São Petesburgo, 1863 - Paris, 1937)

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