A cidade de São Paulo filtrada em azul, da cobertura em que mora o meu amigo
Passando por São Paulo, fui de surpresa visitar um amigo. Estava de saída para uma reunião de trabalho e me fez prometer que o esperaria em casa. Tem vinho e uísque no bar. Na geladeira, refrigerante, presunto e queijo italiano. Tem pão na cozinha. Aqui estão os controles remotos de TV e vídeo. Pode pegar na estante algum livro se te interessar. Te levo depois no aeroporto.
Quis os livros, dispensando a TV, os filmes, o presunto, o queijo italiano, o refrigerante, o vinho, o uísque.
Corri os olhos nas lombadas. Vi logo um nome, Álvares de Azevedo. Há quanto tempo não via um livro de Álvares de Azevedo. Poemas, então! Nem sei se algum dia li algum. Lembro que na escola de teatro encenamos alguma coisa sua. Uma peça, Macário. E que um dia – sei lá por que razão – fotografei seu túmulo, no São João Batista, no Rio de Janeiro.
Era um autor romântico, com direito até à tuberculose. Paulista, nasceu em 1831 - vi depois na Wikipédia ( E olha só a carinha), muito jovem traduziu Shakespeare e Byron. É patrono da Cadeira número 2 da Academia Brasileira de Letras.
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Escolhi um poema e o copiei na agenda. Passado no Rio de Janeiro. Um Rio sem túneis, em que o Catumbi distava léguas do Catete. Não tem título. E começa (olha, que graça):
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da Rua do Catete
A minha Dulcinéa namorada
Alugo ( três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote ( que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela...
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito...mas furtado
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso respirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda Comédia – em casamento
Ontem tinha chovido...Que desgraça!
Eu ia a trote inglês marcahando em chama
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...
Eu não desanimei. Se Don Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fiu mesmo sujo ver a namorada...
Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela,
Por ver-me todo lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela
O cavalo ignorante dos namoros
Entre os dentes tomou a bofetada,
Arripia-se, pula, dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...
Dei aos diabos os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode,
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode...
Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio.

O Rio de Janeiro de Álvares de Azevedo (1830)
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