Seu prazo de validade está vencido
Ano passado me demiti. Anunciei em carta a minhas filhas minha demissão do cargo de Mãe ( assim, com M maiúsculo).
E me demiti pela principal razão de considerar caduca a função a esta altura de nossas vidas.
Adultas, já, as duas, e já mães de seus próprios filhos, não têm mais nenhuma necessidade de Mãe - papel que continuei a exercer indefinidamente, e por puro vício. Relações viciosas que vivemos, sem nunca reavaliar, sem nunca mais questionar.
Contei isso a alguns amigos ( amigas, principalmente, e mães como eu) e se chocaram. Mas também invejaram, pude notar.
E invejaram porque - era perceptível – não era cena. Mas uma verdade profunda, amadurecida depois de trabalhosa meditação sobre os papéis sociais que desempenhamos, sobre as verdades que inventamos e às quais nos aprisionamos. A vida é trabalhosa.
Elas, as filhas – agora ex-filhas - reagiram. Não quiseram aceitar a demissão, que, no entanto, é irrevogável. Pedi para dali em diante ser chamada pelo meu nome e não mais de Mãe. E, para demonstrar talvez a insatisfação, nunca ouvi tanto “Mãe!”, como ouço agora, depois da carta e da demissão. Em corpo presente, no telefone, nos emails, “Mãe”. Mas se acostumarão. De minha parte, passei a assinar meu próprio nome, não mais o nome do (en)cargo que tive antes em suas vidas.
Disse que enterrassem a Mãe e a chorassem, se disto precisassem. Fizessem o luto da morte antecipada. Às vezes precisamos de rituais, para encarar as situações novas. Não fizeram. Ignoraram. Devem ter pensado .”Mais uma loucura de mamãe”, e procuraram fingir que nunca ocorreu a demissão.
Mas a partir dela, nunca mais a eterna vigilância sobre os filhos – para ver se andam fazendo tudo direitinho, conforme lhes ensinamos. Nunca mais o amor irrestrito, obrigatório, saco sem fundo:”Faça eu o que fizer, trate-a como tratar, minha mãe continuará me amando”. Não, quero o amor conquistado a cada dia, nutrido a cada dia, renovado, o amor mais saboroso, porque é perigoso e pode até cessar. Quero a presença querida, desejada, não aquela: “Se não for, minha mãe reclama. Se não telefonar, ela se ressente”. Ah, sou melhor que isso.
Não mais a cegueira de não ver os filhos como realmente são, mas segundo o filtro de nossas expectativas. Nem a cegueira deles em relação a quem sou. Não mais as cobranças de uma parte ou de outra. Não mais punições. Não mais os “ombros largos de Mãe, que agüentam qualquer porrada”, que não os tenho. Não mais a brutalidade desta farsa. Sou um delicado. E mais delicado a cada hora. Quero ser vista na minha delicadeza, cultivada, opcional, tão prezada por mim. Quero ser amada dentro dela. Se o for. Se conseguir de minha parte conquistar e manter este amor.
Não mais a obrigação "gosto de todos os meus filhos igual". Daqui em diante, gostarei mais de quem for mais gostável, chego mais perto de quem estiver mais afeito a mim. Em contrapartida, dispenso o amor de "mãe é mãe e é uma só, está acima de tudo". Não estou. Amem-me agora na medida que quiserem, como quiserem e se quiserem, se eu for merecedora deste amor. Corro o risco. Prefiro assim.
Quero o espaço de amor no coração destas duas mulheres – que agora o são, e não mais as meninas que nada podem sem a Mãe - de discutir minhas angústias. Quero dar colo, sim, mas também pedi-lo quando precisar. Como dou colo e recebo de meus outros amigos, com os quais sou tão mais livre e glamurosa e engraçada e sedutora...
Chega de não querer deixar que os filhos cresçam. Crescerão, queiramos nós ou não. E os meus cresceram.
Não precisam mais de minha proteção, de meu controle. Não precisam de alguém que se acha: “Sei o que é melhor para você". Porque não sei. Porque a verdade dolorosa é que não sei. Não sei ainda, e até hoje, o que é melhor para mim mesma, como saber o que é melhor para eles? E minha mãe, quantas vezes não se enganou, querendo me impor o que lhe parecia melhor para mim?
Eles cresceram. Elas.
Há perdas nessa minha demissão? Provavelmente. E elas reagem: “Mãe!”. Mas, livres, de parte a parte, da Super-Criatura, desse protagonismo caduco e canastrão, insano, protagonismo absoluto e disfarçado de papel secundário, "Mãe", quantas alegrias, quantos prazeres não poderemos ainda curtir juntas ( ou não), se pudermos trabalhar um novo modelo de ser. Aposto nisso todas as minhas fichas.
Poderemos ser amigas, companheiras de verdade – porque companheirismo é aquele onde ninguém deve nada a ninguém e apenas se elegem para isso. Se nos elegermos. É isso. Quero o amor de eleição.
Poderemos ser confidentes, ou só colegas até – mas sem algemas, sem prisões, sem obrigações, sem queixas, sem acusações, sem projeções. Poderemos ser o que bem quisermos, o que bem conquistarmos. É a nossa alforria.
Queríamos mudar o mundo, nos anos 60, nos anos 70. Não conseguimos, claro. O mundo era bem mais complexo do que sonhávamos então, naquela nossa inocência.
Não mudamos a política, a barbárie aumentou, o mundo não ficou mais bonito e florido. Sucederam-se à nossa, gerações dinheiristas, fixadas no sucesso pessoal, esclusivistas, acríticas, acomodadas, cada um cuidando de seus próprios interesses, sem qualquer compromisso ou generosidade com o outro. Não mudamos o mundo. Mas não se pode dizer que não lutamos, e com gana. E se alguma coisa conseguimos de fato mudar, nessa guerra , foi a dura estrutura familiar, rígida, deificada, opressiva, asfixiante, achatadora. Isto, mudamos. Viramos a família de cabeça pra baixo, implodimos a família. Estabelecemos novos modelos, mais lights, mais verdadeiros, mais inteiros. Caíram as máscaras. Explodimos as salas de jantar.
Depois, fomos envelhecendo como no título do romance de Jorge Amado, Teresa Batista, Cansada de Guerra. E assim cansadas como ela, depois que “o sonho acabou”, revivemos a Mãe. A mesma Mãezinha, tão doce quanto controladora, tão superprotetora e excessiva, obsessiva e condescendente quanto o eram as mães do passado. Extemporâneas, agora. Sem mais sentido, sem coerência com a nossa história. Negação de nossa própria trajetória, de nossa própria revolução.
Não, eu me demito. E me dispo da Super-Criatura. Ninguém precisa dela. Nem mesmo eu. Teremos agora que ser mais uma vez criativos e nos reinventar.
Estaremos agora - Mãe e Filha - uma diante da outra, pessoas livres do lixo cultural, da Mãe absurda e anacrônica, chantagista ( de que outra forma se defender do massacre dos filhos, sem uma boa dose de chantagem, consciente ou não, deliberada ou não?), cansativa, com o pensamento voltado 24 horas para o filho.
Livres do Filho egoísta e egocentrado, manipulador, condenado por nós, pela sociedade, por si mesmo, a um eterno vínculo com a infância perdida, primeiro em presença da Mãe, depois, por todo o resto da vida, agarrado à culpa de ter-se perdido demais na Mãe e usufruído de menos da pessoa, da mulher que por todo o tempo esteve a seu lado.
Está feito. Missão cumprida, essa. Resta-me agora viver outros desafios, outras aventuras, fazer outros papéis, em outras peças, protagonizar outras histórias. E alguém duvida que os tenha, e muitos, ainda pela frente?
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