Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia,
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
Cesário Verde
Cesário Verde ( Lisboa, 1855 - Lumiar, 1886)
Mas eu hei de afinal seguir-te a toda a parte,
E um dia quando eu for a sombra dos teus passos,
Tantos crimes terás, que eu hei de processar-te,
E enfim hás de morrer na forca dos meus braços.
Cesário Verde
Poeta português
Cesário Verde é um poeta de passagem. Simbolista um tanto, outro tanto impressionista. Moderno, moderno demais a seu tempo, ainda hoje vê-se nele o traço da modernidade. Cesário Verde viveu apenas 31 anos, e morreu de tuberculose sem nunca ter sido editado. Seu único livro, póstumo, O Livro de Cesário Verde, foi publicado por um amigo que nele reuniu os poemas que pode encontrar. É um poeta de excelência. Um mago da língua portuguesa.
DESLUMBRAMENTOS
Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.
Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...
Em si tudo me atrai como um tesouro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de ouro
E o seu nevado e lúcido perfil!
Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...
Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!
O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!
Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.
E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.
Mas cuidado, mi1ady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.
E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!
Cesário Verde
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