Fevereiro de 1920. Estréia em Berlim o filme O Gabinete do Dr. Caligari, feito no ano anterior, 1919. "Willy Haas escreveu mais tarde (em Die Literarische Welt): Aí estava a Alemanha, gótica, sinistra, demoníaca, cruel . Com seu enredo de pesadelo, sua tendência expressionista, sua atmosfera obscura." Leio isto em Peter Gay, A Cultura de Weimer, livro indispensável para a compreensão do período que antecede e se estende pelo expressionismo alemão e enquanto durou a República de Weimer.
Um dos mais importantes filmes da cinematografia mundial, precursor do cinema moderno, obra-prima e vanguarda dos anos 20, filme imortal, há uma extensa literatura sobre O Gabinete, inclusive na internet. Interesso-me em descobrir o que esteve em torno do filme.
O Gabinete, com seus cenários e interpretações expressionistas e ( ou) surrealistas .
Os roteiristas odiaram o filme
Conta Peter Gay que no inverno de 1918, dois rapazes haviam vivido a guerra, Hans Janowitz e Carl Mayer, horrorizados com o que viram, começaram a trabalhar uma história de opressão, pesadelos e terror, com intenções de denúncia e pacifismo. Pronta a história, ofereceram-na a Fritz Lang, jovem diretor, que por alguma razão não quis dirigí-la, mas deu-lhes algumas sugestões , aceitas, no roteiro.
A história foi vendida ao estúdio de Erich Pommer que então entregou sua direção a Robert Whiene. Filme concluído, os autores se mostraram furiosos . Whiene tinha alterado a história, excluido sua mensagem política e a transformado num roteiro psicológico. No final do filme revela-se que tudo não passara de uma alucinação, que os vilões não são vilões, etc... Mas...
Acima, O Gabinete do Dr. Caligari. A atmosfera escura, tortuosa, distorcida, de pesadelo, assustadora, acabou por politizar o filme e encontrar identidade com o público e seus mais latentes sentimentos
Se não era, virou um filme político
O Gabinete e os filmes que se seguem , na mesma linha, desdobrando-se em obras-primas, acabaram por tornar-se uma expressão política, sim, ideológica, sem querer, talvez, como O Grito de Munch. Vão expressar todo o horror à barbárie, toda a atmosfera de opressão, de sinuosidade do poder público, na escuridão dos porões, dos seres saídos da morte. E encarnar o sentimento de impotência e medo do grande público, que com estes filmes se identificou sem restrições.
Representaram uma Alemanha abalada pela guerra, chorando seus mortos, mas insistindo em reagir, dando lugar a uma produção cultural inovadora, rica, em cada canto, nos kabarets, no teatro, no cinema, nas artes plásticas, na literatura, no design.
Mas seu sucesso foi além de suas fronteiras. Foi mundial. E levaram a indústria cinematográfica de Weimer a competir par-e-passo com Hollywood.
O caligarismo
O Gabinete não foi o primeiro filme no gênero. Foi precedido por O Estudante de Praga, (de 1913) em cuja história um estudante vende o reflexo de sua imagem no espelho a uma figura mefistofélica, e começam então as suas desventuras, perseguido por seu duplo espectral, por Golem (1915) e Homunculus (1916) - os três de Paul Weneger.
O Estudante de Praga, filme de Wegener (1913), antecedeu O Gabinete no cinema expressionista alemão
O Gabinete foi como um coroamento de um movimento que já vinha embrionariamente se fomentando.O sucesso internacional e os altos lucros de bilheteria, além alta qualidade artística, lhe deram o estatus de que ainda hoje desfruta. Sua influência foi tão grande no cinema, na literatura e nas outras arte, que se criou o termo caligarismo para designá-la.
Caligari se tornou uma fórmula. Falamos de uma indústria de cinema, que buscava o sucesso e os lucros. Um projeto político e econômico de ocupação das 2000 salas de cinema do país então ocupadas pelo cinema americano.
Destinos
Robert Weine, o diretor, vinha de uma formação de ator, tendo feito alguns pequenos papéis no palco até estreiar em cinema como roteirista, em 1912. Sua primeira direção de cinema foi O Gabinete. Depois do que, fez uma bela carreira de diretor. Mas foi obrigado a deixar a Alemanha, com a ascenção do Nazismo, trabalhando em diferentes países da Europa. Morreu em Paris, em 1938.
Cenários - direção de arte
Feitos em madeira, pano e papel, os cenários do filme, de paredes e portas distorcidos, elementos geométricos e atmosfera surreal, onírica, são o maior destaque do filme. Acompanhados de figurinos, maquiagens e uma linha de interpretação teatral dos atores , inimagináveis no cinema de então.
Foi Fritz Lang, quem sugeriu a Weine um pano-de-fundo expressionista.
Inspiração em Kubin
Alfred Kubin foi o primeiro artista pensado para a direção de arte. Pintor, desenhista, ilustrador, litogravador e escritor nascido na Bohemia, Império Austro-Húngaro, membro do Der Blauer Reiter ( Cavaleiro Azul), movimento expressionista. Sua obra , definida pelas distorções e as visões fantasmagóricas, de “brilho satânico” como definiu um crítico da época, foi declarada “degenerada” durante o Nazismo. Kubin ilustrou mais de 140 livros, com destaque nas ilustrações para Dostoievsky e Edgard Alan Poe.
Alfred Kubin, 1905. Foi o primeiro artista pensado para a direção de arte d' O Gabinete.
Forma-se o triunvirato
Finalmente três homens vieram, filiados ao grupo Sturm de Berlim, grupo que ajudou a definir o expressionismo. Hermann Warm, Walter Röhrig e Walter Reimann.
Hermann Warm
Pintor, ator, diretor de arte alemão, teve a sua carreira iniciada em 1912, participou da equipe de O Estudante de Praga. Depois d' O Gabinete, trabalhou com Murnau ( Nosferatu) , Fritz Lang ( Destiny) e Dreyer ( Vampyr), entre outras dezenas de filmes, o último deles em 1960.
Durante a Segunda Guerra, Warm exilou-se na Suiça, retornando à Alemanha depois da queda do Nazismo.
Vampyr, de Carl Theodor Dreyer ( 1932) - Outra direção de arte de Warm
Walter Röhrig
Pintor na juventude, cenógrafo teatral e cinematográfico, depois de O Gabinete e o caligarismo continuou no cinema, em filmes de Murnau, Lang e outros.
Last Laugh, filme de W. Murnau, direção de arte de Röhrig, 1921
Walter Reimann
Arquiteto alemão, pintor secundariamente. Sua filmografia é extensa, como cenógrafo, figurinista, diretor de arte, produtor de arte, roteirista. Reimann morreu em 1936.
Uma versão de O Gabinete do Dr. Caligari disponível na internet
O Gabinete original tem 78 minutos. Uma versão reduzida, de 51 minutos, encontra-se disponível na internet : http://www.youtube.com/watch?v=xrg73BUxJLI
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