Um Escravo Chamado Cervantes, Fernando Arrabal - Editora Record - Rio de Janeiro, 1999 - tradução de Carlos Nougué
O livro não é novo. A edição brasileira é de 1999. Mas sou uma intrépida reviradora de sebos, ao vivo ou na internet. Sebos e brechós. Daquelas que comemoram a peça garimpada. Assim cacei o livro de Arrabal, que recebeu o grande prêmio da Société de Gens de Lettres de France, ano 2000.
Fernando Arrabal, romancista espanhol, poeta, dramaturgo, cineasta , reverenciado cervantista e intelectual polêmico, um dos grandes do Teatro Absurdo ( para os menos familiarizados, numa descrição grosseira, a vertente surrealista do Teatro). E, para se ter noção do prestígio internacional de Arrabal, seus livros de poemas são ilustrados por Dali, Magritte e Carlo Saura. E ele encara aqui o projeto de levantar a vida de uma das mais misteriosas figuras da literatura universal.
Sabe-se bem pouco sobre Cervantes. Nem mesmo ao certo em que cidade nasceu ( Alcalá de Benares?, 1547 - Madrid, 1616). N'O Quixote, como em outros livros e poemas, o gênio da língua castelhana dá apenas umas poucas dicas autobiográficas, e só para os mais atentos.
Mas Arrabal aqui refaz seu tempo e de sua família e antepassados, à luz de documentos históricos, e traçando paralelos com episódios vividos por Dali, Picasso, Breton e outros seus contemporâneos ( Arrabal é de 1932), Trotsky e ele mesmo, Arrabal. O primeiro dos documentos, o que abre o livro, um mandato de prisão da Corte contra Cervantes, condenado a ter amputada a mão direita e mais ao desterro por dez anos. Escapou, fugindo para a Itália. Cervantes perdeu, mais tarde, na Batalha de Lepanto, a mão esquerda ( o que lhe valeu o apelido de "o maneta de Lepanto"), mas teve salva a direita, a mão de escritor. O singular documento, datado de 1569 e descoberto em 1820, atesta, segundo Arrabal, que Cervantes, aos 21 anos, fora condenado, sob a acusação de homossexualismo.
Especulações sobre hipotética homossexualidade de Cervantes e até de seu personagem, O Quixote, vem sendo feitas na última década. Pessoalmente, não sei em que conhecer a condição sexual deste autor pode importar na leitura de sua obra. Mas com toda certeza influirá saber de seu tempo, dos comportamentos e realidades de então. E nisso o livro de Arrabal é excelente.
Raramente pensaremos no Don Quixote nascendo sob influência ainda do pensamento inquisitorial, sob a herança e a égide do sinistro Tomás de Torquemada ( responsável pela morte de mais de 2.000 acusados de heresia e judaismo), e morto apenas 50 anos antes do nascimento de Miguel de Cervantes. E nas marcas que este pensamento teria deixado na sua família , no próprio Miguel ( e na persona do Quixote).
Como todas as famílias espanholas de então, a família Cervantes não tinha garantia, prova ou certeza de pureza de sangue, vivendo todo o tempo sob esta ameaça, enquanto assistia enojada aos Autos-de-Fé, ao apedrejamento dos sambenitados e ao hábito das delações.
O excesso de inversões nas frases ( não sei se do autor ou do tradutor) faz do livro de Arrabal leitura às vezes um tanto enfadonha, salva pela opção de capítulos curtos. De qualquer forma, vale resistir. Com certeza o livro dá uma nova chance á leitura do Quixote.
Tomás de Torquemada in Happier Times
Para delatar um herege judeu assim ensinava a Inquisição Espanhola;
"Se observar que teus vizinhos estão vestindo roupas limpas e coloridas no sábado, eles são judeus.
Se eles limpam suas casas na sexta-feira e acendem velas bem mais cedo do que o normal naquela noite, eles são judeus.
Se eles comem pão ázimo e iniciam sua refeição com aipo e alface durante a Semana Santa, eles são judeus.
Se eles recitam suas preces diante de um muro, inclinando-se para frente e para trás, eles são judeus."
( Wikipédia)
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