Engraçado. Outro dia, lendo Adélia Prado, encontrei um poema seu que nem lembrava que existia. A poesia é assim. Às vezes a gente passa batido, e só vai descobrir mesmo anos depois. e esse começa assim: Quando eu nasci, um anjo...Pensei, claro, como é mesmo de intenção da poeta, em Drummond . E pensei em Torquato Neto. Cada qual com seu anjo.
Aí tive a idéia de buscar os outros e juntar aqui os três poemas. No caminho, encontrei mais um: o anjo de Chico Buarque. E vi também que alguém já tinha tido a mesma idéia, de juntar todos eles, na bonita página de Drummond do site Alguma Poesia, sob o título Os Filhos do Anjo Torto . Estão todas lá. O link deles é http://www.algumapoesia.com.br/drummond/drummond35.htm
Mas não desisti, mesmo assim. E eis aí os quatro anjos.
Drummond
Poema das sete Faces
(Primeiro texto do primeiro livro do poeta, de 1930)
Quando nasci,
um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida
Torquato Neto
LET'S PLAY THAT
(musicado por Jards Macalé)
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto, com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando minha mãocom um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar o coro dos contentes
(Do CD Torquato Neto - Todo Dia É Dia D, Vários Artistas, Dubas Música, 2002)
Adélia Prado
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.Eu sou.
In Adélia Prado, Poesia Reunida Siciliano, São Paulo, 1991
Chico Buarque de Hollanda
ATÉ O FIM
Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim
Não tem cigarro, acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem lembro pr'onde mesmo que vou
Mas vou até o fim
Como já disse, era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
Do LP Chico Buarque - Polygram, 1978
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