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31 de out. de 2008

Carta do pintor Emiliano Di Cavalcanti a Astrogildo Pereira

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Paris, 24 de setembro de 1937.


Meu Velho,


Você, que tanto ama Machado de Assis, deve ter a lembrança de um magnífico poema que ele escreveu e que termina assim: ...Mudaria o Natal ou mudei eu?
Neste mundo de hoje, mundo tormentoso e cruel e miserável, a noite de Natal enche-nos – a nós, que já passamos da idade das doces ilusões – de uma tristeza sem remédio. É a vil tristeza da desilusão.

Qual a melhor noite de Natal de minha vida? Eu me lembro de minha infância, na pequenina casa de São Cristóvão, de meu pai na cadeira de balanço, de minha mãe tocando sonata. O Natal de menino!

Depois, as noites de Natal quando desperdiçava minhas forças nas alegrias barulhentas dos anos vinte. No tempo que a vida não tinha para mim perspectiva, que era como uma estampa iluminada no gênero luxurioso das estampas persas. Não, essas noites de Natal não valem nada.

As outras noites que passei em Paris... Acho que uma noite dessas, eu, o meu querido Zeca do Patrocínio, já meio bêbados, encontramos um casal de velhos folgazões que procuravam companhia para o reveillon. Eram dois romenos. Subimos ao pequeno apartamento que eles ocupavam numa pobre casa do quarteirão latino. Era comovente. Bebemos perneaut e champanhe e cantamos as mais tristes histórias de nossos países. A velha romena quis cantar – não pode !

E o álcool e a sensibilidade me fizeram chorar, olhando a neve no telhado vizinho.
O ano passado passei o Natal com amigos daqui. Dois deles morreram tragicamente, um dia direi a você de que maneira.

O Natal desse ano me asfixia! Sinto-me prisioneiro de uma enorme e incurável melancolia. Se estivesse aí no Brasil iria visitar o túmulo de minha mãe, iria conversar com você que é o único amigo que ainda me resta. Mudaria o Natal ou mudei eu?

Não tenho escrito porque tenho trabalhado muito. Estou doente e fatigado. O seu Demóstenes, creio que vai breve por um portador. Aqui está fazendo muito frio e a vida está cada vez mais cara. Espera-se todo dia que a situação internacional nos leve à guerra. Não sei. Acredito que a guerra não virá nesses dois anos ou mesmo quatro. Quando ela vier, será como uma terrível apoteose aos baixos instintos do homem.

Sabe que tenho escrito muita poesia e pintado pouco. A poesia me seduz muito agora porque é tudo que pode haver mais gratuito e mais extra-conformista.

Abraço do seu

Di Cavalcanti


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